Repórter: Mirella Schuch
Colaboração: Briann Ziarescki Moreira, Kamila Jaskiu, Natália Souza, Pâmila Capelli, Paula Fernanda Taffarel Benetti e Vanessa Marquezzan
Supervisão: Eliane Taffarel (jornalista responsável), Ilka Goldschmidt e Ana Paula Bourscheid (coordenadoras da Acin Jornalismo)
Você já parou para pensar que existe uma profissão que consiste em apanhar frangos diariamente? Solange Mees Mohr, Joceli de Fatima Pereira e Manuel Francisco Toledo fazem parte desta classe, profissionais que foram diretamente impactados pela aprovação da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467), que completou um ano de implantação em novembro de 2018.
A carne de frango está presente na alimentação, sendo a mais consumida pelos brasileiros. No almoço, às vezes comemos frango à passarinho. Ou então, nos finais de semana normalmente – pra quem gosta e come a carne – saboreia uma carne de frango bem grelhada – ou mal passada, para quem preferir. Muitas vezes esquecemos que a carne que compramos não está à toa nas prateleiras de açougues e supermercados. Ela tem uma origem e um processo até chegar embalada, embutida e industrializada em nossas casas.
Por trás disso, estão os carregadores de frango, profissionais essenciais e muitas vezes desconhecidos pela população. O serviço destes trabalhadores é apanhar as aves que estão no aviário e colocá-las dentro de caixas. A função de empilhá-las em cima de caminhões é do empilhador de caixas. Na sequência, as aves são levadas para os frigoríficos, onde são abatidas.
Muitas vezes, quem trabalha na área de carregamento de aves passa mais de duas horas no deslocamento entre sua casa, o aviário e o caminho da volta para sua residência. Essas horas de deslocamento são chamadas de “in itinere”. O pagamento dessas horas partiu de interpretações que foram incorporadas à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) em 2001, através da Lei nº 10.243. Ela previa a remuneração correspondente ao trajeto quando o empregador fornecia o transporte, seja pela ausência de transporte público regular ou pelo difícil acesso ao local de trabalho.
O texto da Reforma Trabalhista, artigo 58, parágrafo segundo, prevê que “o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador”. Desta forma, as empresas deixam de ser obrigadas a pagar as horas “in itinere“, já que o tempo de deslocamento passou a ser excluído pela lei.
Não somente os carregadores de aves deixam de receber essas horas, mas todos os trabalhadores que atuam em local de difícil acesso e de longos trajetos. De acordo com o professor de Direito do Trabalho e advogado trabalhista, Alessandro Langlois Massaro, embora o trajeto de trabalho tenha continuado o mesmo, o trabalhador perdeu direitos após a revisão na legislação.
O juiz da 1ª Vara do Trabalho de Chapecó, Carlos Frederico Fiorino Carneiro, destaca que o carregamento de aves é uma das profissões mais afetadas pela Reforma Trabalhista. Ele relata que estes empregados passam mais tempo no transporte do que no trabalho e se a empresa não fornecer o transporte, eles não conseguem se deslocar até os aviários. “O que fica claramente excluído da nova lei é o trajeto de ir até a primeira granja e o retorno para casa”, afirma.
Segundo o advogado trabalhista Jozenir Soares de Camargo, que atua em Chapecó – SC, o carregamento é uma função degradante. “Temos muitas ações trabalhistas de carregadores. Muitas vezes, sem alimentação, sem intervalo. Tem contato com o solo do aviário, a cama, que contém as fezes dos frangos. Nessa cama, tem um gás que é muito nocivo. É muito perigoso para o trabalhador. Apesar disso, não recebem adicional de insalubridade”, afirma.
Cada caixa com frangos pesa em média 20 Kg. De acordo com Jozenir, em cinco anos de trabalho os carregadores de aves sentem a necessidade de sair da função e, na maioria das vezes, as empresas não querem demitir o funcionário, mas sim que eles mesmos peçam a demissão. Além disso, comenta que em pouco tempo de serviço os carregadores já adquirem problemas de saúde. “A maioria das ações que recebemos envolvem doenças do trabalho, principalmente no braço, no ombro e na coluna. Muitos desenvolvem esses problemas com apenas dois anos de serviço. Acima disso, já tem problemas graves”, explica.
“Eu tinha hora para ir, mas não tinha para voltar”
Solange Mees Mohr, moradora de São Carlos, município localizado a cerca de 47 Km de Chapecó, filha de agricultores, aos 20 anos de idade deixou a lavoura por conta das dificuldades financeiras da família e foi trabalhar em um frigorífico em Chapecó. Dois anos depois, em 2007, ela decidiu abandonar o emprego e passou a desenvolver a atividade de carregadora de aves. Sua rotina de trabalho era incerta. “Eu tinha hora para ir, mas não tinha pra voltar”, relata.
Solange diz ter feito muitas horas extras sem receber. Apesar das longas horas de trabalho, ela nunca faltou, mesmo se estivesse doente, pois seu patrão reclamava. Além disso, se não fosse trabalhar, faltava funcionários na equipe e não teria como fazer a substituição. “Se não íamos eles descontavam o dia e se colocavam alguém no nosso lugar nós é que pagávamos”, comenta. Solange conta ainda que, por conta dos dias de feriado, precisava trabalhar para compensá-los. “Sabendo que é um direito da gente, né? A gente tinha que trabalhar pra pagar!”, lamenta.
Certa vez, Solange precisou usar o banheiro do escritório onde trabalhava, mas o pedido foi negado. “Um dia aconteceu de eu estar sentindo uma dor de barriga e fui pedir para usar o banheiro do escritório, mas não deixaram. Pedi duas vezes e recusaram. Acabei constipada e fiquei três dias de atestado. Estava com febre, nem conseguia parar em pé. A sorte é que eu não tive esses dias descontados”, conta. Os dias em que Solange tirou atestado não foram descontados, mas ela e um colega tiveram R$ 150,00 subtraídos de seus salários porque foram ao velório do líder de sua equipe.
Solange passou por várias dificuldades em seu trabalho. O frio e a chuva eram seus maiores obstáculos. No verão, os nebulizadores e ventiladores eram ligados, pois os frangos se amontoavam e acabavam morrendo com o calor. Por conta da troca de temperatura, Solange gripava-se. Por conta de sentia muito calor, usava uniformes de manga curta e acabava levando arranhões dos frangos. Por isso, sempre teve várias cicatrizes.
Quanto aos Equipamentos de Proteção Individuais (EPI’s), ela recebia luvas, botas e roupas, mas não máscaras. A empresa lhe deu dois pares de luvas, porém se rasgava ou perdia, ela mesma tinha de comprar outra. “Acontecia de trocarmos as luvas quase toda semana. As caixas tinham partes quebradas e as luvas enroscavam e rasgavam ali. Se fosse pedir outra, eles reclamavam, perguntavam o que tinha acontecido com a luva. Então eu tinha que trazer a luva de casa e mostrar para eles, justificar, senão não ganhava”, relembra.
O local de trabalho, os aviários, são insalubres, ou seja, podem ocasionar ao trabalhador problemas de saúde. As roupas dos carregadores ficavam sujas de um aviário para outro. Solange relembra que às vezes sua equipe tinha de tomar banho para ir até o outro aviário nas madrugadas, na água gelada. Mesmo trabalhando sob essa condição, Solange afirma não ter ganho insalubridade.
As horas “in itinere”, relacionadas ao deslocamento dos carregadores, eram pagas à Solange, mas, segundo ela, após certo período a empresa deixou de pagá-las. Não só estas foram as dificuldades pelas quais a ex-carregadora passou nos sete anos em que trabalhou na área. A equipe, que anos atrás era composta por 12 funcionários, fazia oito cargas por dia. Ela conta que no começo carregavam um caminhão em até duas horas, mas depois tiveram de carregar em até 40 minutos. “Tinha exigência da empresa para fazer mais rápido”, salienta.
Mesmo não sendo sua responsabilidade, Solange empilhava eventualmente as caixas com os frangos no caminhão. “Era um chumbo”, afirma. Foi a única mulher da equipe que empilhava caixas. “A empresa dizia que nós íamos em cima de metida. Às vezes os meninos machucavam os dedos, ai eu subia, pois éramos uma equipe”, relata.
Quem é empilhador de caixas ganha mais que o carregador de aves. Segundo Solange, os homens que eram carregadores em sua equipe ganhavam mais, mas ela não. “Meus colegas homens sempre ganhavam mais do que eu. Existe essa diferença. Mesmo quem não batia caixa e era carregador homem, ganhava a mais que eu, que também batia”, diz.
Solange começou a ter problemas de coluna na última empresa de carregamentos em que trabalhou, a Desincete, mas só deixou o emprego depois de sofrer um acidente. “Me acidentei quando eu estava empurrando uma última caixa. Arrebentou a hérnia de disco. Passei mal e ninguém se preocupou. Tive que me afastar”. Diante de toda dedicação que teve em seu trabalho e a falta de preocupação da empresa com o acontecido, Solange decidiu processar a Desincete, no ano de 2016.
Um dos fatores determinantes para a decisão de processar a empresa foram os problemas de saúde resultados dos anos de trabalho no aviário. “Eu sempre ajudei quando precisava socorrer as outras equipes, mas nunca recebi meus direitos”. O processo de Solange foi encerrado através de acordo com a empresa, que precisa pagar mensalmente, até julho de 2019, 12 parcelas da indenização que soma o valor total da ação de R$ 15 mil. O valor parece alto, mas não compensa de forma alguma as sequelas que o trabalho deixou para Solange.
Diante de todos os problemas e dificuldades, o pior para Solange foi não ver os filhos Igor e Camila crescerem, pois precisava dormir o dia inteiro para conseguir trabalhar à noite. Ela não conseguia sair do trabalho para ajudá-los e, por isso, sua mãe cuidava deles. Na metade de 2016, a mãe de Solange faleceu. “É complicado quando a mulher tem filhos, principalmente no meu caso, que fui abandonada pelo meu marido com duas crianças pequenas”, desabafa emocionada.
Mulheres e o impacto da Reforma Trabalhista
A reforma também atingiu as mulheres grávidas e lactantes. Antes da mudança, a empregada gestante ou lactante deveria ser afastada durante o período de lactação e gestação de qualquer atividade considerada insalubre, devendo exercê-las em local salubre. Este era o enunciado do parágrafo único do artigo 394-A da CLT. O artigo foi revogado e substituído por nova redação. Na legislação trabalhista atual, o parágrafo segundo do artigo 394-A diz que a empregada gestante deverá ser afastada de atividades consideradas insalubres em grau médio ou mínimo se apresentar atestado de saúde que recomende o afastamento, emitido por médico de confiança da mulher. O professor Alessandro Massaro ressalta que a mudança na legislação no caso das gestantes causa riscos para as gerações futuras.
A situação das mulheres grávidas que faziam o carregamento era complicada. Solange não trabalhou nessa função grávida, mas uma de suas amigas sim. Ela conta que o patrão não afastou a amiga do serviço enquanto estava grávida. “Tava nas últimas ali. Tu acha que ele afastou ela? Não! Teve que trabalhar até o último dia. Lá não tem serviço levianinho sabe? É tudo pesado”, ressalta.
De acordo com o terceiro inciso do artigo 394 da CLT, a empregada lactante deverá ser afastada de atividades consideradas insalubres em qualquer grau se apresentar atestado de saúde que indique o afastamento durante a lactação, emitido por médico de confiança da mulher. Assim, a mulher precisa provar ao empregador que precisa ser afastada.
O artigo 396 da CLT prevê que a mulher terá direito a dois descansos especiais de meia hora cada um para amamentar durante a jornada de trabalho. A reforma incluiu um segundo parágrafo a esse artigo, o qual estabelece que os horários desses descansos deverão ser definidos em acordo com o empregador. A inclusão deste parágrafo dá a oportunidade para acordos que, dependo do empregador, podem prejudicar a empregada. Para o professor Alessandro, esta inclusão retira direitos das trabalhadoras.
Mais redução, menos direitos
Os acordos entre empregador e empregado flexibilizam as relações de trabalho. Essa flexibilização é desfavorável ao empregado, afirma Alessandro. “Que negociação existe? Qual é a possibilidade efetiva de o trabalhador negociar isso? Ou seja, é uma porta aberta para a imposição. A reforma passou a proteger menos o empregado, passou a possibilitar que o empregador tenha mais dedicação do empregado, com menor proteção para o empregado”, argumenta.
Quando o trabalhador tem um direito seu desrespeitado, a Justiça do Trabalho era o último recurso que ele tinha para consegui-lo. A reforma trabalhista alterou questões processuais do trabalho, o que dificulta o acesso do trabalhador à justiça. Na Justiça do Trabalho, antes da reforma trabalhista, o trabalhador não pagava o chamado honorário de sucumbência. Agora, em um processo de trabalho, o honorário sucumbencial é cobrado do perdedor da causa. Segundo o professor Alessandro, esta norma é desfavorável ao empregado.
De acordo com o professor, se o perdedor for condenado por todas as causas e não tiver condições financeiras para pagar os honorários sucumbenciais, será contemplado com a justiça gratuita e não pagará o valor de imediato, mas se, no decorrer de dois anos, por exemplo, adquirir um outro valor, o judiciário pode usar desse valor que ele veio a ganhar para pagar a dívida.
A redução de direitos na Consolidação das Leis Trabalhistas faz com que o empregado tenha menos direitos para reivindicar. Além disso, a alteração nas questões processuais do trabalho intimida os trabalhadores a exigir seus direitos na justiça, pois além de haver a possibilidade de não ganhar a ação, terá que pagar as custas do processo ao vencedor. Esta foi uma das medidas responsáveis pela considerável redução de processos trabalhistas.
Para o professor Alessandro, a reforma trabalhista não foi pensada por pessoas que quisessem melhorar a condição social e de vida dos trabalhadores, ela teve flagrantemente a intenção de reduzir custos para o empresariado com o empregado. “Se considerarmos que no Brasil a grande massa de trabalhadores têm pouca ou nenhuma qualificação e que estes podem ser facilmente substituídos por qualquer outro operário, o impacto do texto da reforma para estes profissionais é negativo”, ressalta.
O desconhecimento da reforma
Joceli de Fatima Pereira é carregadora de aves. Ela já trabalhou no comércio de resinas no estado do Rio Grande do Sul, no período de novembro de 2006 a maio de 2007. Em junho de 2008, foi operadora de produção na Sadia de Chapecó e, em outubro do mesmo ano, trabalhou como auxiliar de produção na Bondio Alimentos em Guatambu-SC.
A ex-carregadora de aves trabalhou cerca de cinco anos nesta área. A primeira empresa em que iniciou como movimentadora de mercadorias – função referente ao carregamento de aves – foi a Quality Serviços em Granjas Avícolas LTDA, em 2008. De maio a junho de 2013, trabalhou como auxiliar de produção na Cooperativa Central Aurora Alimentos. Em dezembro de 2013, Joceli voltou para a atividade de movimentadora de mercadorias na Quality de Chapecó. A última empresa em que exerceu a função foi a Fox Coleta de Aves LTDA, local em que ficou até abril de 2017.
Questionada do porquê começou a trabalhar com aves, a ex-carregadora diz que prefere essa área do que trabalhar como doméstica. “Achei melhor, ganhava bem e o serviço era bom”. Joceli já fez horas extras, mas diz recebeu o valor equivalente ao trabalho realizado. Para ela, o peso dos frangos que carregava não era excedente e nunca empilhava caixas, pois os “piás” não deixavam. O carregamento das aves não precisava ser rápido. “A gente tinha que pegar bem os frangos pra não machucar, porque depois dá quebra nas carca”, explica.
A quebra que Joceli se refere depende de como o frango é carregado. Se pego e posto na caixa com muita força e rapidez, pode-se machucar a carcaça das aves, as pernas e demais partes sensíveis dos frangos. Questionada sobre as dificuldades de ser carregadora de aves, Joceli diz não ter tido nenhuma. “Nunca tive dificuldade. Eu sempre vi as piazada fazer. O jeito que eles faziam, eu fazia”, diz.
A história de Joceli é semelhante a de Manuel Francisco Toledo, conhecido como Chiquinho. Os dois são companheiros e vivem juntos em Caxambu do Sul – município com cerca de 4.400 habitantes – localizado a 40 km da maior cidade do Oeste catarinense: Chapecó.
Chiquinho é líder de equipe, mas também exerce a função de carregador de aves. Ele trabalha para a Fox Coleta de Aves LTDA – empresa de carregamento terceirizada, com sede em Chapecó e que faz cargas para a agroindústria Brasil Foods (BRF). Em agosto de 2018, Chiquinho foi demitido devido a Lay Off, mas não sabe explicar o que foi essa medida.
A BRF unidade Chapecó precisou aderir à Lay Off por conta de uma crise financeira de exportação e em julho de 2018 suspendeu o contrato com vários funcionários o que consequentemente refletiu no carregamento de aves. Isso fez com que a Fox, empresa em que Chiquinho trabalha, suspendesse o serviço com seus contratados por cinco meses. Ele diz que recebeu seus direitos quando foi suspenso, mas desconhecia o porquê do afastamento, pois a empresa não esclareceu isso aos funcionários. Em janeiro deste ano a empresa o contratou novamente.
Este desconhecimento em relação a Lay Off se repete no caso da reforma trabalhista, na medida que afetou todos os trabalhadores. Questionada sobre a mudança, Joceli diz não estar trabalhando no momento em que a lei foi implantada, em 11 de novembro de 2017, portanto não sabe dizer se a reforma afetou seu trabalho. Quando indagada se acha que algo deveria mudar em relação a área de carregamento de aves, ela diz que, para ela, como está, está bom. “Não tem o que mudar, eu acho”, aponta. Já Chiquinho diz que a reforma melhorou o trabalho dele. “Não dá pra dizer que não, porque melhorou um pouco”, diz. Segundo ele, as leis agora exigem mais do patrão. Questionados, eles entendem que possuem pouca informação acerca das mudanças impostas pela reforma trabalhista.
“Quanto mais informação pra gente, melhor”, afirma Chiquinho. A fala do carregador de aves reflete o desconhecimento dele em relação a reforma trabalhista. Esta é a realidade de muitos trabalhadores que, por não conhecerem seus direitos, acabam não procurando a Justiça para cobrá-los. Além disso, a dificuldade em encontrar outro emprego faz com que trabalhadores deixem de acessar a Justiça com receio de perder o trabalho e não conseguir sustentar a si e a família. O advogado Alessandro reconhece o desconhecimento da reforma por muitos dos trabalhadores: “O trabalhador desconhece muitas vezes os direitos, muitos têm baixíssima escolaridade e nem sabem efetivamente que existe uma legislação que o protege”, salienta.
Chiquinho está há mais de 10 anos na área de carregamento de aves. Como líder de equipe, trabalhou na Fox por cerca de quatro anos; e na Quality Serviços em Granjas Avícolas LTDA por quase cinco. A primeira empresa em que Chiquinho trabalhou, por quase um ano e meio, foi a York, que faliu. Nesta última era carregador. Antes de trabalhar nesta área, era ajudante de produção no comércio de resinas em cidades do Rio Grande do Sul.
O carregamento de aves é uma atividade penosa. Às vezes, trabalhar nessa área não é uma opção, mas uma das únicas alternativas. Esse é o caso de Chiquinho. Ele conta que trabalhou por dois dias em um frigorífico, mas não aguentou por conta da baixa temperatura do ambiente. Depois dessa experiência frustrada começou a trabalhar como carregador. “Era aquilo ali ou frigorífico, mas no frigorífico não me adaptei por causa da umidade e eu tinha problema de pulmão. Não me sentia bem, o local era muito fechado. Apareceu a oportunidade de carregador de aves e nos demos bem no serviço”, relembra.
Na Fox – antes da Lay Off – a equipe de Chiquinho fazia o carregamento de aves nos municípios de Ipuaçu, Xanxerê, Xaxim, Palmitos, Coronel Freitas, Nova Erechim, Cunha Porã, Águas de Chapecó e outras cidades próximas na região, como Pinhalzinho – local onde mais tinham trabalho. Chiquinho explica que se o caminhão atrasava, consequentemente o expediente se prolongava, mas, de acordo com ele, se houvesse atraso, ligavam para o supervisor mandar outra equipe até o local para concluir a carga.
O líder de equipe conta que a rotina era a seguinte: “Nós saímos às três horas da manhã. Fazíamos o apanhe duas, três horas num local e depois íamos para o outro lugar fazer mais duas ou três horas. Chegávamos lá, fazíamos o apanhe de novo, e na sequência o intervalo. Carregávamos mais uma ou duas horas e chegávamos em casa às dez e meia da manhã ou onze horas”. Tudo dependia do trajeto de ida e volta. Se a granja fosse perto, chegavam cedo em casa. Se fosse longe, chegavam um pouco mais tarde.
O tempo máximo de carregamento das aves de cada caminhão era de uma hora e dez minutos, mas geralmente a equipe levava uma hora. Nos minutos que sobravam, os funcionários ocupavam seu tempo bebendo água, indo ao banheiro e descansando. Até agosto de 2018, a equipe era composta por nove pessoas: cinco carregadores e quatro empilhadores. Quando Chiquinho começou a trabalhar na Fox, havia três mulheres em sua equipe. Depois de certo tempo havia apenas uma e, antes de ser demitido, a equipe era composta somente por homens. Os carregadores são as pessoas que apanham os frangos nos aviários e os colocam dentro de uma caixa. Essa caixa é posta em cima de uma esteira que está ligada a um caminhão e é empurrada por eles. No caminhão, a caixa é empilhada em cima de outras caixas pelos empilhadores, mais conhecidos como batedores de caixa.
O peso de cada ave, segundo Chiquinho, é de, no máximo, três quilos e colocava-se sete aves em cada caixa. Nessa equipe, os empilhadores eram apenas homens e ganhavam mais que os carregadores, por conta do peso excessivo. Chiquinho explica que quando havia mulheres na equipe elas ficavam somente no carregamento.
Alguns colegas trabalhavam na parte da tarde e outros à noite. Cada equipe de carregamento tem seu horário de trabalho, mas a empresa faz o revezamento das equipes para os funcionários não trabalharem sempre no mesmo período. Havia dias em que a equipe de Chiquinho trabalhava mais de oito horas. Segundo ele, era no máximo uma hora além das já trabalhadas, pois a empresa não permitia mais que isso. Ele conta ainda que ganhavam pelas horas extras.
Quanto às horas “in itinere”, Chiquinho diz serem contadas no cartão ponto da empresa Fox, pois assinavam o cartão a partir do momento em que saiam de casa. A reforma diz que não é obrigatório pagar essas horas, mas de acordo com ele, a Fox nunca deixou de pagá-las. Já a York, não as pagava.
Chiquinho diz ter ficado 16 horas fora de casa na primeira empresa de carregamento em que trabalhou, a York. Antes da demissão, o funcionário anotava as horas quando saía de casa e assinava. No momento em que iniciava e terminava o intervalo, assinava novamente. O líder de equipe – neste caso Chiquinho – corrigia os cartões ponto de cada um dos funcionários.
Em relação a vestimenta, ele relata: “Saía de casa com a roupa normal, chegava no aviário e colocava a roupa de trabalho; saía desse aviário, colocava a roupa normal; chegava no outro aviário, colocava a roupa de trabalho”. Além da roupa apropriada para o carregamento, usavam equipamento de proteção, como máscara, luva, botina e boné. Se algum desses equipamentos estragasse, era responsabilidade de Chiquinho trocá-lo, pois, caso contrário, quem respondia pelo descumprimento da regra era ele.
Durante o período que exerceu a função de líder, nenhum funcionário de sua equipe sofreu acidente de trabalho, mas em outras equipes acidentes ocorreram. Conforme ele, a empresa se responsabilizou pelos acidentes. Chiquinho conta que a temperatura nos aviários climatizados era agradável. No verão, eram ligados os exaustores e ventiladores. No frio, eles eram desligados. Quando começou a trabalhar no carregamento de aves, a quantidade desses exaustores era bem menor. Naquela época, um de seus colegas sofreu falta de ar por conta do calor excessivo.
Na carteira de trabalho de Chiquinho sua função está descrita como líder de equipe, mas conta que exerce também a função de carregador de aves. Antes da demissão por conta da Lay Off, Chiquinho exercia além destas duas, a função de motorista. “Eu fazia três funções, na realidade. Eu dirigia, carregava e coordenava”. Em relação a sobrecarga de funções, Chiquinho desabafa: “No começo, eu chegava em casa bem abatido, mas depois a gente foi se acostumando”. Segundo ele, um dos motoristas da empresa quase causou um acidente por conta da sobrecarga de funções e, consequentemente, o cansaço extremo.
O líder diz não sofrer dificuldades na área em que já trabalha há mais de 10 anos e alega que sempre buscou pelo melhor de seus colegas através de cobranças à empresa quando as coisas não iam bem. Conta, ainda, que o serviço não trouxe a ele traumas físicos, nem psicológicos.
De acordo com publicação da Agência Brasil, mais de 100 artigos da CLT foram alterados com a Reforma Trabalhista. Para o coordenador da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar de Santa Catarina (Fetraf/SC) – que também é avicultor há 30 anos – Alexandre Bergamin, a reforma trabalhista afetou todos os trabalhadores e, em especial, o setor de carregamento de aves.
Terceirização no meio rural: redução de direitos
Além da reforma, outra lei relaciona-se com as questões de trabalho, porém não está incluída na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A Lei 13.429/2017, conhecida como a lei da terceirização, dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros.
Segundo o professor Alessandro Massaro, a terceirização subverte a lógica do direito do trabalho, visto que é uma forma de colocar-se entre a relação empregado e empregador. Uma empresa terceirizada contrata pessoas para fornecer mão de obra para uma outra empresa.
De acordo com o Artigo 10 da Lei 13.429/2017, “qualquer que seja o ramo da empresa tomadora de serviços, não existe vínculo de emprego entre ela e os trabalhadores contratados pelas empresas de trabalho temporário. Assim, a empresa terceirizada é quem tem relação de emprego com o empregador. O professor Alessandro ainda ressalta: “quem contrata a empresa terceirizada não pode dar ordens ao empregado terceirizado, somente a empresa terceirizada”.
A terceirização no setor de carregamento de aves não é algo novo. Mesmo antes de existir uma lei que regulamentasse a terceirização, já havia avicultores que terceirizavam esta atividade, como é o caso de Sadi Pompeu da Silva, morador do município de Caxambu do Sul-SC. Sadi conta que há 20 anos atrás tinha dois aviários e produzia frangos para a Sadia – atual BRF.
As equipes de carregamento de aves que trabalham hoje não existiam anos atrás e, assim, Sadi montou um grupo de avicultores de comunidades próximas para fazer o carregamento. O veículo de transporte normalmente era um trator, van ou camioneta. Por conta da experiência desse grupo de avicultores, a BRF procurou Sadi e o grupo começou a fazer o carregamento das aves para a empresa. Até aí, o serviço era frio, ou seja, sem legalização.
Com esses maquinários, muitas famílias conseguiram trabalhar, até porque não era apenas um integrante da família que fazia parte do grupo, mas de sete a oito pessoas. Mesmo tendo tanta gente, às vezes precisavam reunir sete equipes para vencer o serviço. Sadi conta que as empresas procuraram várias pessoas para desenvolver este trabalho, mas não encontravam mão de obra. Mesmo sem carteira assinada, Sadi afirma que o valor compensava. “Quando a gente trabalhava frio, não tínhamos direito nenhum, mas o ganho era bem maior”.
Sadi teve papel importante na legalização dos grupos de carregamento de aves na região. Foi um dos primeiros avicultores a legalizar uma equipe de carregadores de aves, formada naquele momento por 12 funcionários. Para essa legalização, Sadi contou com o auxílio do Sindicato dos Trabalhadores na Movimentação de Mercadorias em Geral de Chapecó – SITRAMMEC. Neste período, o sindicato era presidido por Oneide de Paula.
De acordo com Oneide, em Chapecó, os carregadores de aves foram incorporados ao SITRAMMEC a partir de 2004. “Nós lutamos através do Ministério do Trabalho, com a denúncia de que os agricultores se reuniam entre eles e faziam a carga. Também soubemos da criação das ‘equipes de gato’ – denominação dada ao grupo de pessoas que se reúnem para prestar um determinado serviço, sem estarem devidamente registradas. Assim, começamos a legalização das empresas”, explana.
Neste mesmo período, um grupo da cidade de Xaxim – a aproximadamente 26 km de Chapecó – montou uma empresa terceirizada de carregamento, a York. Através deles, Sadi montou cinco equipes de carregamento. Foram seis anos trabalhando para essa empresa, agora, de forma legalizada. Os carregamentos eram feitos para agroindústrias da Aurora de Chapecó, Xaxim, Maravilha e do estado vizinho, Rio Grande do Sul. Sem suporte, a York faliu, situação que fez com que os empregados deixassem de receber pelo seus serviços. A Aurora, que terceirizou o carregamento, assumiu a dívida.
Segundo o professor Alessandro Massaro, a lei da terceirização estabeleceu que se a empresa de trabalho terceirizado abrir falência ou não tiver, no caso de rompimento contratual com o empregado, como pagar verbas rescisórias e encargos trabalhistas, a empresa que contratou a mão de obra será responsabilizada de forma solidária pelo pagamento das despesas.
A atividade de carregamento de aves é regularizada através da Lei 12.023/2009, mas com o nome de ‘movimentadores de mercadoria’, pois, de acordo com o inciso primeiro do segundo artigo da lei, dentre as atividades de movimentação de mercadorias estão: cargas e descargas de mercadorias a granel e ensacadas, costura, pesagem, embalagem e outras atividades.
De acordo com o inciso primeiro desta legislação, “as atividades de movimentação de mercadorias em geral exercidas por trabalhadores avulsos, para os fins desta Lei, são aquelas desenvolvidas em áreas urbanas ou rurais sem vínculo empregatício, mediante intermediação obrigatória do sindicato da categoria, por meio de Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho para execução das atividades”. O sindicato responsável, neste caso, é o SITRAMMEC, já citado anteriormente.
Após a falência da empresa York, outra empresa de carregamento de aves surgiu na região, a Desincete. Essa iniciou com uma equipe e em seis meses outras sete foram formadas. No município de Águas de Chapecó-SC, a cerca de 50 km de Chapecó, a empresa também começou com uma equipe e logo tinha seis equipes de carregamento montadas. Já em Xaxim-SC, 22 equipes se constituíram. Em questão de oito meses, a empresa contava com 92 equipes, que apenas prestavam serviço para a Aurora.
Sadi trabalhou para a Desincete de 2011 a 2015, não como carregador, mas coordenador de todas as equipes de carregamento de aves da região Oeste de Santa Catarina. O trabalho pioneiro de Sadi consolidou a terceirização na área de carregamento de aves na região de Caxambu do Sul e municípios vizinhos. A terceirização era prevista somente para atividades meio. A partir da nova legislação, ela é liberada para qualquer tipo de atividade, inclusive a atividade fim. Conforme o professor Alessandro Massaro, essa medida diminui o custo de quem contrata um trabalho terceirizado.
Por conta da lei da terceirização, empresas de diferentes ramos podem colocar em prática qualquer negócio sem ter empregados diretos, pois podem contratar uma empresa terceirizada que irá fazer o intermédio da relação de trabalho com seus empregados. Para o professor Alessandro, esta norma é mais uma desvantagem para o trabalhador, afinal, para a empresa terceirizada obter lucros, os funcionários recebem salários inferiores em comparação a contratações diretas. Além disso, o empregado fica mais vulnerável a demissões e a constante troca de local de trabalho, já que esse processo é gerido pela empresa terceirizada e não pela contratante dela.